RAÍZES DO POPULISMO NO BRASIL
PRIMEIRA PARTE:
VARGAS, RIO GRANDE DO SUL E
PATERNALISMO
Paulo Schiling apresenta
uma interessante visão da formação histórica de Vargas. Reproduzimos aqui
algumas de suas ideias.
Vargas, típico fazendeiro gaúcho,
incorporava todos os modelos dos caudilhos da região platina. Cabe lembrar que “geograficamente
o Rio Grande do Sul foi mais rio-platense que brasileiro e durante um largo
período esteve mais vinculado culturalmente com o Uruguai e Argentina do que
com os estados do centro e norte do Brasil”. (SCHILING, Paulo. Como se Coloca a Direita no Poder.)
É provável que Vargas
tenha recebido influências históricas de personalidades platinas, como Artigas
e Rosas, mas é inegável a sua formação liberal-positivista. “Com
Júlio de Castilho e Borges de Medeiros, as ideias de Augusto Comte foram
filosofia e práxis governamentais durante três décadas no Rio Grande do Sul”.(Idem)
O Rio Grande do Sul
apresentou, durante todo o processo histórico brasileiro, uma formação
diferente da do resto do País. O modelo histórico global era assentado no
latifúndio, na monocultura, no trabalho escravo e no caráter extrovertido da
sua economia. No Rio Grande do Sul, a colonização consolidou-se com a criação
de gado, de maneira nômade, a princípio, e sob a forma de grandes latifúndios
posteriormente.
As disputas ali ocorridas
foram constantes em vários níveis: lutava-se pela ampliação das fronteiras,
pela manutenção e aumento do rebanho, pela política municipal e pela política
estadual. Desta forma, foram sendo plasmados
líderes “com características muito especiais, uma versão crioula do senhor
feudal, uma mistura de estancieiro-chefe militar”. (Idem)
A criação de gado, somada
às características acima, favorece, se não
determina, o aparecimento de relações trabalhistas diferentes daquelas vistas
em outras regiões do país. Onde predominava a agricultura de exportação, a
intervenção do feitor no controle do trabalhador era brutal. No Rio Grande do
Sul, onde o pastoreio é o denominador comum da economia, havia também o
trabalho duro, mas “ao mesmo tempo, tinha muito de esporte e aventura” (Idem)
O fazendeiro gaúcho
impunha sua liderança “não somente com base na relação
patrão-assalariado, como também em função de sua capacidade de liderança, seu valor
pessoal e sua coragem (…) O fazendeiro rio-grandense, no passado e ainda hoje
em muitos casos, enfrenta o trabalho – para o rodeio, laça, castra, doma,
marca, banha e cura seu gado – junto aos peões, justamente pelo mencionado
caráter esportivo e aventureiro das lides do campo (…) o estancieiro comparte o
churrasco e o chimarrão com a peonada, pelo menos nas jornadas de trabalho.
Eram inegavelmente relações de trabalho muito especiais, que, apesar de manterem uma exploração econômica
violenta, criavam vínculos pessoais que tornavam praticamente impossível a luta
de classes”. (Idem)
É neste dado que podemos
encontrar a formação do caráter patriarcal e paternalista. Para consolidar essa
posição, o líder – carismático, como vimos – leva à pia batismal os filhos de
seus subordinados, criando uma relação de para-parentesco ou pseudoparentesco.
Esses são alguns dos
ingredientes básicos do populismo. E esses são alguns dos caracteres marcantes
em Getúlio Vargas. Levado ao poder federal pela revolução de 1930, Vargas
“tratou de aplicar no plano político nacional a experiência sociológica,
primária, porém eficiente, de sua classe social: os fazendeiros gaúchos”. (Idem)
SEGUNDA PARTE:
1930 – UMA REVOLUÇÃO SUBDESENVOLVIDA
Em 3 de novembro de 1930,
Getúlio Vargas recebe o poder das mãos da Junta Pacificadora, encerrando uma
etapa daquela que foi chamada de Revolução de 1930.
Ao analisarmos esse
marcante episódio da História do Brasil, verificamos que os historiadores tomam
posições diferentes e até mesmo divergentes quanto ao mesmo. Para muitos, ela,
a Revolução de 1930, foi a revolução burguesa do Brasil. Para outros, é o lado
oposto, apresentando a revolução como meio de ampliação do mercado para a venda
de carne de seus rebanhos.[i] Um terceiro grupo retrata
que a Revolução de 1930 é “a simples escaramuça entre o imperialismo
norte-americano e o inglês”, tomando por base a ajuda que a companhia Bond and Share deu ao movimento.
Contudo, as três posições
não resistem à visão crítica. Em primeiro lugar, não se pode classificar de
burguesa uma revolução, que tem suas origens em
dois (ou três, se contarmos a Paraíba) Estados tipicamente
oligárquico-latifundiários, movida contra
outro Estado (São Paulo), também de domínio oligárquico, mas onde se forjava a
burguesia industrial.
Em segundo lugar, para
ampliar o mercado para a venda de carne não seria necessário a revolução. “Bastaria
conseguir reformas cambiárias que possibilitassem uma maior exportação do
produto ao mercado internacional, muito mais importante e atrativo do que o
nacional”. (Idem)
E não nos esqueçamos que Vargas foi Ministro
da Fazenda de Washington Luís. Antes da década de 30, havia barreiras
alfandegárias entre os Estados, dificultando o mercado nacional.
Em terceiro lugar, a
política nacionalista posta em prática por Vargas, embora não radical, era uma
manifestação contra o crescimento do imperialismo norte-americano e não contra
o inglês, já decadente desde o fim da Primeira Guerra Mundial.
É natural, no entanto, que
haja essas posições diferentes e todas elas com visões conflitantes sobre o
movimento de 1930. Ele não é, do ponto de vista social, o encerramento nem o
nascimento de grande mobilidade – ao menos horizontal – de nossa sociedade.
Analisar as classes sociais de um país subdesenvolvido, que se encontram na
passagem do campo para a cidade, das relações estruturais em mudança, é tarefa
altamente complexa. As classes estão em formação e a sociedade está em
movimento. Os valores de ontem podem ser os antivalores de hoje.
A Revolução de 1930 foi o
movimento possível naquele momento
histórico. Apresenta uma série de limitações, mas tratar dessas limitações
seria cair numa discussão imprópria aos objetivos deste trabalho. Cabe, no
entanto, citar pelo menos um elemento limitativo. O movimento de 1930 não se
baseou numa teoria revolucionária clara e definida. Levou em seu bojo toda uma
gama de contradições típicas do policlassismo que caracterizou seus dirigentes
e seus militantes. Se fizermos um corte vertical nos elementos que realizaram o
movimento, poderemos identificar uma verdadeira babel de interesses, de
classes, de categorias e até mesmo de ideologias.
Por esse dado, e por
outros, é que nos cabe categorizar o movimento de 1930 como uma revolução
subdesenvolvida, esposando o conceito de Paulo Schiling.
Até mesmo a conceituação
de “Revolução” pode ser condenada, se vista em sua profundidade. O movimento de
1930 não rompeu o processo histórico brasileiro, e esteve longe disso. Fruto de
uma dissidência oligárquica, representou uma nova composição das classes
dominantes. Uma resposta modernizadora às novas tendências socioeconômicas
surgidas na década de 1920. Progenitora do populismo nascente, a “Revolução de 30” serviu mesmo de obstáculo à
autêntica Revolução que alguns setores sociais acreditavam ser possível na
época. Nesse sentido, vale destacar a lúcida decisão de Luís Carlos Prestes,
figura maior do tenentismo, em não aceitar os insistentes pedidos para se
engajar no movimento.
Em outras palavras, o
movimento de 30 realizou a frase do oligarca Antonio Carlos, às vésperas da
eclosão do movimento: - “Façamos a Revolução, antes que o povo a
faça”. As notícias vindas da Europa Oriental, mais propriamente da
URSS, chegavam aos ouvidos da classe dominante, atemorizando-a. A modernização
decorrente da “Revolução de 1930”
foi o preço pago pelos novos dirigentes às massas e às classes médias.
“Conceder para não ceder” deve ter sido o rótulo da nova facção dirigente. Uma
facção experimentada neste tipo de relacionamento, desde a sua formação.
TERCEIRA PARTE:
A
BURGUESIA NÃO FAZ A REVOLUÇÃO.
A REVOLUÇÃO FAZ A BURGUESIA.
Durante o processo
histórico de formação e cristalização do sistema capitalista, é possível
identificar algumas rebeliões burguesas. Em grande parte delas, no entanto, o
controle do poder político não ficou diretamente nas mãos burguesas, mas em
alguém forte que representasse os
interesses dessa classe. Sobre isso, já se manifestou Engels, ao definir
bonapartismo “… é a verdadeira religião da burguesia moderna. Está cada vez mais
claro que a burguesia não tem capacidade de governar diretamente, por sim
mesma, e que, em consequência, onde não existe uma oligarquia – como na
Inglaterra, que, em troca de uma boa paga, assume a administração do Estado e
da sociedade para defender os interesses da burguesia – a forma mais usada é a
instituição de uma semiditadura bonapartista (…) Os grandes interesses
materiais da burguesia levam isso a cabo, ainda com a oposição da própria
burguesia”. (ENGELS, F. citado por SCHILING, P. Op. Cit.)
Mais tarde, Lênin
atualizaria essa mesma posição de Engels, ao analisar o bonapartismo do início
do século XX: “A luta de classes entre a burguesia e o proletarismo agudizou-se até o
insustentável (…). Não são essas contradições ideais para que floresça o
bonapartismo? Se dá o nome de bonapartismo ao governo que, esforçando-se por
aparentar imparcialidade, aproveita-se da luta aguda e extrema que se verifica
entre os partidos capitalistas e dos operários…”. (Idem, ibidem)
Embora essas posições
possam ser admitidas para o centro do sistema capitalista, não podemos apenas
transportá-las para as “revoluções” periféricas. É importante que, no afã de se
interpretar a realidade brasileira à base de situações e categorias verificadas
em outras épocas, em outros países, não se transplantem mecanicamente as
conclusões dos clássicos válidas para outras realidades.
Nos países
subdesenvolvidos, a “Revolução” (como a de 1930 no Brasil) pode ter origem nos
fenômenos clássicos – luta burguesa contra domínio oligárquico –; até mesmo o
chamado bonapartismo pode ter a mesma base, ou seja, a incapacidade da
burguesia fazer sua revolução e em assumir efetivamente o papel de classe
dirigente. Essa possível identidade entre centro e periferia decorre da
internacionalização do sistema, com a Europa lançando seus tentáculos
burgueses, abraçando o mundo no colonialismo e no neocolonialismo.
Contudo, a especificidade
da situação de periferia, confere aos países subdesenvolvidos uma realidade
diferente daquela apresentada pelos países centrais. A própria burguesia dos
países periféricos só vem a se plasmar com, pelo menos, um século de atraso em
seu desenvolvimento econômico, social e político.
Na periferia do sistema
capitalista, principalmente na América Latina, os Estados foram e são dirigidos
por latifundiários e pelo setor exportador da burguesia mercantil. Estas
facções dirigentes adotam sempre uma política livre-cambista (ortodoxa até a
crise de 1929-30 e pragmática após esse episódio). A política livre-cambista,
benéfica aos estados de economia já industrializada, torna-se um grande
obstáculo para o surgimento da indústria nacional nos países subdesenvolvidos.
E é exatamente por ser
periférico que um país capitalista subdesenvolvido torna-se incapaz de reter em
seus cofres os capitais acumulados pela produção nacional. O comportamento de
um país periférico obedece aos dogmas impostos pelo próprio sistema, tornando
sua economia um escoadouro de capitais que são acumulados no centro. Este
último instala, com raízes profundas, uma bomba de sucção dos valores
produzidos pelos países satelitizados. A população do país subdesenvolvido
passa a ser, inclusive, dominada pela ideologia imposta pelo centro do sistema,
consolidando, desta forma, a mais terrível espécie de colonialismo: o cultural.
Somando-se essas
características típicas da periferia (falta de uma política fiscal alfandegária
protecionista; baixa capacidade de acumulação de capital) podemos concluir que
a burguesia nacional subdesenvolvida é, antes de tudo, uma burguesia sem capital. Assim sendo, é praticamente impossível a ela
própria, realizar, sozinha, uma revolução industrial em seu país.
“Somente o Estado, pelo seu sistema financeiro, possibilitando créditos fáceis,
baratos e com um mínimo de garantias, poderá suprir essa incapacidade, dando a
oportunidade a que a burguesia se consolide como classe e protagonize o
processo de industrialização. Apesar desse favoritismo creditício, a capacidade
da burguesia não é suficiente para criar a indústria de base, que exige
aplicação de capitais vultosos e sem os quais todo processo industrial seria
fictício, pois ficaria na total dependência do fornecimento externo de
matéria-prima industrial, como o aço”. (SCHILING, Paulo. Op. Cit.)
É de se concluir,
portanto, que a burguesia de um país periférico é dependente do Estado, é uma
burguesia artificial, frágil. A burguesia nacional, para tentar se expressar
como classe, para romper alguns laços com a burguesia internacional nesse jogo
de forças imposto pela divisão internacional do trabalho, busca na proteção do
Estado a saída para romper com o status de desenvolvimento.
Pelas
análises acima, no caso brasileiro, não podemos rotular a Revolução de 1930
como fruto do bonapartismo, como visto em outras revoluções. Em substituição a
essa etiqueta, devemos considerar, sim, a função do paternalismo estatal. É o Estado que fez emergir a burguesia,
proporcionando-lhe “proteção contra a concorrência internacional, créditos fáceis e
baratos, um total liberalismo econômico interno (necessário a uma rápida
acumulação de capital), a instalação da indústria de base que lhe proporcione
matéria-prima e energia elétrica baratas e, ainda, o intervencionismo social
por parte do Estado, que lhe assegure paz social”. (Idem, Op. Cit.)
QUARTA PARTE:
A EMERGÊNCIA DO
PROLETARIADO E DA CLASSE MÉDIA
Ao analisarmos mais esses
extratos de sociedade brasileira no momento que antecede a Revolução de 1930, podemos
reforçar nossa posição em não aplicar mecanicamente o rótulo de bonapartismo
para o Brasil. De forma alguma podemos aceitar, para esse caso, as palavras de
Lênin, quando disse – sobre outras revoluções – que a luta de classes entre
burguesia e proletariado havia se “agudizado até o insustentável”. Da
mesma forma que a burguesia nacional, já analisada, o proletariado brasileiro
era, na década de 1920, apenas um esboço, um traço fino e frágil num quadro
emoldurado pelas oligarquias.
As lutas proletárias nesta
época eram inúmeras, mas débeis em consistência e em resultados. Quantitativamente
inexpressivo, o proletariado industrial brasileiro não passava dos 300.000
homens. Suas reivindicações mais violentas, envolvendo greves, piquetes,
agitações, eram tratadas pelo governo como um “caso de polícia” e não como questão social, como atestam as
palavras de Washington Luís, então presidente da República: “Ainda
por muitos anos (…) a agitação operária será assunto que interessará mais à ordem
pública do que a ordem social (…). Ela representa o estado de espírito de
alguns operários, porém não de uma sociedade…”. O historiador Edgar
Rodrigues (em Trabalho e Conflito.
Rio de Janeiro, Ed. Do Autor, 1975) aponta para a década de 1900-1910 um total
de 111 greves, na seguinte década, 258. Mas há divergências entre os autores
analisados, como Paula Beiguelman (Os
Companheiros de São Paulo. São Paulo, Ed. Símbolo, 1917), Ricardo Maranhão
(Sindicatos e Democratização. São
Paulo, Brasiliense) e o próprio Edgar Rodrigues
O proletariado brasileiro
torna-se quantitativamente expressivo no bojo do crescimento industrial, a
partir de Vargas e de Juscelino Kubitschek no poder, não antes.
Quanto às camadas médias,
aqui consideradas como “aqueles setores da população que, não sendo
detentores de capital, realizam o trabalho predominantemente não manual, quer
trabalhando por conta, que vendendo a sua capacidade de trabalho a terceiros”,
caracterizam-se pela heterogeneidade de interesses. Seus integrantes,
diferenciados entre si, não expressavam uma coerência ideológica a ponto de
constituir uma força política expressiva. Sua oposição ao regime oligárquico da
República Velha era tênue e imediatista. Sua aspiração era a elevação social, a
modificação de status. Seu grande
temor era o descenso social. Desta forma, atuava como instrumento da própria
classe dominante, opondo-se e distanciando-se ideologicamente das reais
manifestações políticas proletárias, como atesta seu comportamento na grande
greve de 1917.
Algumas vezes, no entanto,
ela se associa provisoriamente às camadas inferiores, desde que seja para
reivindicar reformas, não revolução.