- O Brasil tem um deputado internado na UTI dos vegetais, e de lá não sairá. Como foi eleito, muitos de seus eleitores também estão. Todos coitados, dignos de pena. Para eles, a vida não tem nenhum significado.
- O deputado e seus eleitores não conhecem o Coral e a Sinfônica de Heliópolis, onde tantas crianças e jovens, brancos e negros, todos pobres, dão um salto qualitativo em suas vidas.
- O deputado e seus eleitores nunca ouviram o samba-enredo da Unidos de Vila Isabel, campeã de 1988, Kizomba Festa da Raça: "Vem a lua de Luanda/ Para iluminar a rua/ Nossa sede é nossa sede/ De que o apartheid se destrua. "Não ouviram, estavam na UTI. E também nunca escutaram Ataulfo Alves, Clementina de Jesus, Milton Nascimento, Jamelão. Nem Vinícius de Moraes, autointitulado "o branco mais preto do Brasil" .
- Nunca leram nada sobre o Rei Manuel Congo ou sobre Preto Cosme. Faltaram à aula de História exatamente no dia em que o assunto era a Balaiada, a Revolta dos Malês, a formação de quilombos. Faltaram, coitados, pois estavam na UTI, depois de comerem uma deliciosa feijoada que, é claro, tinha feijão preto.
- E também não leram nada de Machado de Assis, nem de Lima Barreto. Nunca ouviram falar de José do Patrocínio, André Rebouças, Joaquim Nabuco, Teodoro Sampaio, das artes de Aleijadinho e do Mestre Valentim. Não sabem nada sobre Abdias Nascimento nem do maestro Lobo de Mesquita.
- O deputado e seus eleitores rasgam as páginas de esporte que falam de Didi, Garrincha, Pelé, Zé Maria, João do Pulo, Coutinho, Vladimir. Não gostam do Ronaldinho Gaúcho nem de Neymar ou de Robinho.
- Nunca ouviram falar do Mestre Didi e de suas obras de arte afro-brasileiras, com peças espalhadas pelo mundo, incluindo o Museu Picasso em Paris e o MAM de Salvador e Rio de Janeiro. Também não sabem da existência de um tal Hamilton Naki, cirurgião negro que participou do primeiro transplante de coração de todos os tempos, em 1967, na África do Sul, realizado pelo cardiologista Christiaan Barnard. Por ser negro, Naki não apareceu na foto. Mas, com o fim do apartheid, seu trabalho foi reconhecido com o título de doctor honoris causa. Se o deputado ou um de seus filhos precisarem de um transplante cardíaco, aceitarão o coração de um negro? Ou de um homossexual?
- O deputado e seus eleitores estavam quase saindo da UTI quando Barack Obama venceu as eleições, continuando o sonho de Luther King. No mesmo ano, Lewis Hamilton venceu o Grande Prêmio de Fórmula 1. Voltaram para a cama e não compareceram à inauguração da estátua de João Cândido, fincada na praça XV, debruçada sobre a Baía da Guanabara, cenário da luta do "Almirante Negro". Mas estiveram presentes o Presidente Lula, Candinho (filho de João Cândido), Edson Santos (Ministro da Igualdade Racial ), Zezé Motta, Martinho da Vila, João Bosco. Os filhos do deputado, é claro, não foram.
- Coitado do deputado e de seus eleitores. Para tirá-los da UTI em que vegetam no limbo do fascismo, podemos fazer algumas coisas. Primeiro, apelar para os Irmãos de Fé, rezando para Nossa Senhora do Rosário, para São Benedito, para Nossa Senhora Aparecida, ao som de um berimbau e de um agogô. Depois, tirar do quarto do hospital a imagem de Domingos Jorge Velho e substitui-la pela de Zumbi. E trocar a comida sem sal e sem graça por acarajé, vatapá ou mungunzá.
- E, se não der resultado, que tal usarmos a Lei de Afonso Arinos, de 1951?
Meu pai querido,
ResponderExcluirquero que tenhas a convicção de que compartilho e assumo com dignidade essa sua narrativa histórico-crítica de nosso cotidiano brasileiro e global.
Acabo de discutir com meus alunos de Comunicação e Cultura um cap. do livro do Darcy Ribeiro, "O Povo Brasileiro" e passar o vídeo do MIAC e segunda-feira levarei seu texto para eles.
Obrigada pelo presente!
Beijos e abraço forte com orgulho de ser sua filha.
Cíntia
"Se o deputado ou um de seus filhos precisarem de um transplante cardíaco, aceitarão o coração de um negro? Ou de um homossexual?"
ResponderExcluirProfessor, sabia, crítica e poeticamente despertou em meus lábios risos e sorrisos. Que texto maravilhoso! Aumentou substancialmente minha bagagem cultural e me deu argumentos para louvar com ainda mais êxtase a contribuição que meus descendentes deram na edificação desse Brasil. País um tanto ingrato que, construído sobre as costas de negros, tem a coragem de hostilizá-los. De certa forma, é vergonhoso a existência de uma lei para punir preconceitos raciais. Significa que não há respeito pela pessoa do próximo (não importa se é negro ou homossexual ou não). Significa que o homem tende eternamente ao estado de barbárie...
Muito obrigada, professor, pelo texto maravilhoso! Obrigada pela atenção!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir"Leva meu samba, meu mensageiro!"
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