O COLAPSO DAS OLIGARQUIAS
Durante as três
primeiras décadas do século XX, as oligarquias agroexportadoras dominaram o
poder na América Latina. No plano das relações internacionais, os governos
estavam subordinados ao imperialismo, principalmente ao inglês. Afinal, como
essas oligarquias eram exportadoras de gêneros primários, não podiam seriamente
se incompatibilizar com os compradores internacionais. O Estado era, assim, a
imagem e a semelhança dos interesses dessas oligarquias e das forças do
industrialismo imperialista externo.
A Primeira Guerra
Mundial (1914 a 1918) envolveu as potências industriais que, pelo esforço de
guerra, não puderam manter seu nível de exportação de industrializados para as
áreas satélites. Enquanto suas exportações declinavam, suas importações de matérias
primas, insumos e alimentos aumentava. Na
periferia, ocorreu o processo de substituição de importados e a fábrica chegou,
embora com atraso de, pelo menos, um século. Com a fábrica, veio a urbanização
e o crescimento do proletariado urbano. Veio também a burguesia urbana, a
princípio umbilicalmente ligada às oligarquias tradicionais. E cresceram as
classes médias urbanas, ligadas à expansão dos serviços públicos, do comércio
varejista e do setor de serviços.
Independentemente de sua vontade, as elites agrárias dominantes viam
crescer classes sociais (proletariado urbano, burguesia industrial e classes
médias) que, enquanto classes, e de maneira mais ou menos intensa, lhe fariam
oposição.
A década de 1920
foi particularmente grave para o poder oligárquico. Por um lado, “um novo fantasma”
assustava o mundo capitalista: a Revolução Bolchevique de 1917 e a vitória dos
Russos Vermelhos sobre os Russos Brancos e seus aliados capitalistas na Guerra
Civil ocorrida entre 1918 e 1921.
Por outro lado, o liberalismo clássico dava
sinais de esgotamento em função de suas contradições estruturais, a ausência do
controle estatal sobre a economia. A crise, não sendo atacada em seu início,
estourou em 1929 e se prolongou pelo período da “Grande Depressão”. E, evidente,
o centro do sistema capitalista reduziu seus investimentos e suas importações
de produtos primários. Embora não tenha sido a causa determinante, a Crise de
1929 foi o cenário para o colapso do poder das oligarquias tradicionais
latino-americanas.
As frequentes dissidências no seio das oligarquias,
associadas à da crise do liberalismo, criaram um vazio de poder: as oligarquias
já não conseguiam a unidade de poder como antes, as classes médias, a burguesia
urbana e o proletariado eram ainda frágeis para assumirem o poder em seu próprio
nome.
Neste vazio, nasceram e cresceram as forças do populismo, um
estilo de poder cujo discurso propunha representar todas as classes e a
defender a economia nacional.
TRÊS CONCEITOS DE POPULISMO
1) “… uma maneira determinada e concreta de manipulação das
classes populares (…) um meio de expressão de suas inquietudes (…) uma forma de
organização do poder pelos grupos dominantes e a principal forma de expressão
política da ascensão popular no processo de desenvolvimento urbano e
industrial”. (WEFFORT. IN: SAES, Décio. Industrialização, População e Classe Média no Brasil. p. 12.)
2) “Na América Latina não existe uma definição
precisa de populismo; o uso corrente da palavra se refere, predominantemente, a
movimento político de tipo urbano. Em sentido mais amplo, o populismo
latino-americano pode definir-se como uma forma organizacional para sincronizar
grupos de interesses divergentes, e se aplica a qualquer movimento não baseado
em uma classe social específica”.(DI TELLA, Torcuato. IN: IONESCU e
GELLNER (compiladores). Populismo.)
3) “O populismo se caracteriza como
a ideologia das camadas médias já desembaraçadas da ascendência social das
oligarquias e politicamente representadas pelo tenentismo nacionalista (…) numa
conjuntura de transição capitalista periférica; todavia, o caráter embrionário
das novas relações permite que o populismo penetre a classe operária em
constituição e que se torne a sua forma essencial de expressão. (…) as forças
do “compromisso” consagrarão objetivamente o populismo como estratégia política
de desenvolvimento adequada a uma etapa de transição”.( SAES, Décio. Op.
cit. p. 17)
CARACTERÍSTICAS GERAIS DO POPULISMO NA
AMÉRICA LATINA
Os três populistas mais importantes
da América Latina são Perón, na Argentina, Cárdenas, no México e Vargas, no
Brasil. A partir dos conceitos citados anteriormente, podemos estabelecer uma
caracterização ampla de populismo para a América Latina.
Perón e Vargas se
apoiaram mais nos trabalhadores urbanos, deixando em segundo plano os
camponeses. Cárdenas incluiu os trabalhadores rurais em seu programa,
realizando uma reforma agrária no estilo populista, longe da defendida pelo Plano de Ayala dos campesinos
zapatistas. Todavia, há características
comuns, a saber:
a) o populismo só aparece
em uma determinada etapa do desenvolvimento do capitalismo. Esta etapa é a que
marca a separação do trabalhador dos seus meios de produção;
b) o populismo revela
antagonismos de classe, sobretudo crise de hegemonia na classe dominante, no
caso latino-americano, as oligarquias agrárias;
c) o processo de formação
do populismo se inicia com uma fase bonapartista e termina na fase
nacionalista. Entende-se por bonapartismo uma luta pelo poder;
uma procura de equilíbrio entre as classes sociais que participam da coalizão
populista a partir da caracterização do “vazio político”; uma hipertrofia do
Executivo, com a consequente submissão do Legislativo; uma tentativa de
organização do poder além do aparelho estatal ou a incorporação, pelo aparelho
de Estado, de sindicatos e partidos políticos. Entende-se por nacionalismo,
como característica do populismo, por certa dose de anti-imperialismo,
sobretudo contra os Estados Unidos; como uma concepção de desenvolvimento
autônomo (como a criação da Petrobrás no Brasil e da Pemex, no México); uma
exigência de participação das forças sociais que os regimes oligárquicos
tradicionais haviam mantido à margem do processo político; uma preferência pela
coalizão ou frentes à ação das classes sociais;
d) o populismo é um
fenômeno predominantemente urbano;
e) o populismo é uma etapa
específica na evolução das contradições entre a economia nacional (burguesia
nacional) e a economia dependente (burguesia internacional).
Assim, podemos inferir
que, para a América Latina, o populismo é um movimento político de tipo urbano,
com forte apoio popular, que revela o antagonismo de classes e de encadeamentos
de relações econômicas e relações políticas, numa conjuntura de transição
capitalista periférica, que procura sincronizar grupos de interesses
divergentes.
Especificamente na América
Latina, o populismo deve ser visto no contexto do processo de desenvolvimento
das relações de produção capitalista. Corresponde a uma etapa específica na evolução
entre a sociedade nacional e a economia dependente. Aí, o governo populista
procura uma nova combinação entre as tendências do sistema social – em mudança
– e as determinações da dependência econômica.
Na América Latina, como em
outras partes do mundo (Estados Unidos e Rússia czarista), o populismo
corresponde à etapa final do processo de dissociação entre trabalhadores e os
meios de produção. Entre a estrutura rural, tradicional – onde o campo
predomina sobre a cidade – e a estrutura urbana moderna – onde a cidade
predomina sobre o campo – há um momento de transição, no qual o fenômeno do
populismo encontra perfeitas condições de correspondência. É no momento de
transição, e somente no momento da transição, que o populismo revela suas
características definidoras.
O populismo
latino-americano pode, como o foi, ser organizado em termos de Partido
Político. Os partidos populistas são, segundo Alan Angel, policlassistas, de
massa e reformistas, em oposição aos partidos “tradicionais”.
Um conteúdo essencial do
seu policlassismo é, obviamente, a aliança de classes, um determinado “pacto
populista” em que ocorrem barganhas entre as classes componentes dessa
coalizão. O líder populista, necessariamente carismático, fica com a função de
intermediário dessas barganhas, inclusive aquelas realizadas entre as massas e
os grupos economicamente dominantes. É desta forma que a coalizão populista
tende a obscurecer as características de cada classe, valorizando as massas, “o
povo”, igualando ideologicamente interesses heterogêneos.
O ESTADO POPULISTA
Dois são os aspectos
importantes da coalizão: primeiro, que toda política populista paga um preço
pela adesão popular, qualquer que seja a amplitude de sua capacidade de
manipulação; segundo, que o “vazio político” deixado pelas oligarquias
dissidentes, aliado à descaracterização das classes sociais, permite a ascensão
do Estado Populista.
Não podemos localizar a
gênese do Estado Populista apenas no plano interno. Vários fatores conjunturais
estão no alicerce dessa formação, como, por exemplo, a reformulação das
relações e das estruturas de dependência, como ocorreu na passagem do liberalismo clássico para o keynesianismo, após a crise de 1929.
O advento desse novo tipo
de Estado representa não uma ruptura no processo histórico, mas apenas uma
modernização, uma renovação de relações. Muda o relacionamento do Estado com a
Sociedade – ou desta com aquele – mas não muda, no essencial, o caráter
capitalista das relações de dominação e apropriação econômica, típica do
sistema capitalista.
Dentro do Estado
Populista, o peso político específico das classes que compõem a coalizão não é
igual. A burguesia faz prevalecer seus interesses e sempre rompe com o pacto
quando se põe em perigo a classe dominante ou as condições de reprodução do
capital. O proletariado e as classes assalariadas entram na composição do pacto
motivadas por razões econômicas imediatistas. Mas o Estado Populista, quando em
fase cristalina, consegue manipular em seu proveito todas as vozes de todas as
classes, pois todas elas – burguesia, proletariado e outras – estão em vias de
formação. E se o Estado já é definidamente populista, também são manobradas as
sobrevivências políticas do antigo e derrotado Estado Oligárquico. Não podemos
nos esquecer que o Estado Oligárquico, a partir da intensa urbanização e
incipiente industrialização – que aceleram a formação da estrutura de classes
sociais –, havia ultrapassado seus limites históricos de sobrevivência e
explodido, permitindo surgir, de suas entranhas, o Estado Populista.
Quando começa a ocorrer a
predominância da cidade sobre o campo, há nova divisão do trabalho, pois o
desenvolvimento das relações de produção capitalistas altera as feições e
estruturas urbanas. As camadas urbanas, ao negarem a oligarquia, o imperialismo,
a economia primário-exportadora, passam a representar as bases sociais das
estruturas do poder emergente: o Estado Populista. “O Populismo aparece também como
um modo de organização política das relações de produção numa época em que se
expandem as forças produtivas e o mercado interno”.(IANNI,
Otávio. A Formação do Estado Populista
na América Latina, p. 135)
Mas é no corpo definidor
do populismo que se encontra seu paradoxo, seu anticorpo. As classes sociais
que constituem o pacto populista continuam a se desenvolver como tais ao longo
da duração da coalizão. Muitas vezes, a ruptura
do populismo se dá por causa das contradições desenvolvidas entre as classes
que compõem o próprio populismo.
A ruptura da coalizão pode
revelar a um só tempo: as condições precárias em que se verificou a aliança; o
caráter não harmônico de uma aliança entre desiguais; o indício de que as
classes sociais não se apagam, mas desenvolvem-se no curso da aliança; ao longo
da experiência populista, as classes sociais amadurecem suas especificidades.
A experiência populista
corresponde a uma fase, sem dúvida peculiar, no desenvolvimento das relações de
acomodação e antagonismo entre as classes sociais participantes da aliança.